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  • Por Terapia Morfoanalítica
  • 26 de julho de 2017

Sentir as palavras, pensar com o corpo

Mesa: Da somatização ao pensamento

É POSSÍVEL O NOVO

Márcia Castanho Lavaqui Gonçalves

“Sonhe com o que você quiser. Vá para onde você queira ir.

Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida

e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.

Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana.

E esperança suficiente para fazê-la feliz.”

Clarice Lispector

Uma jovem mulher de mais ou menos vinte e cinco anos me procura para tratar de uma dificuldade de realização profissional, de seguir sua vida adulta, relatando muito medo de se separar de sua mãe. Conta que perdeu o pai quando tinha sete anos, num acidente automobilístico, e a partir de então tornou-se a companheira inseparável e “alicerce” da mãe, que mergulhou numa depressão profunda e lhe pedia para ser forte.

Estes fatos me foram relatados por ela na entrevista, com emoção, mas sem a compreensão da dimensão que tudo isto acarretou em sua vida.

Ao longo das sessões vejo que foi um traumatismo que a bloqueou para o mundo, num completo estado de desamparo que a impediu de desenvolver suas potencialidades emergentes da idade que estava e a manteve no mesmo estado caótico da ocasião do acidente. Em sua próprias palavras as suas queixas eram “ atualmente não consigo separar-me da minha mãe, apesar de pensar em mudar de trabalho (na ocasião da entrevista trabalhava com a mãe) não sei qual é o meu desejo saindo de lá, e minha mãe, iria suportar? ” Logo que termina de falar isto ela mesma reflete se não é ela que não consegue se separar da mãe. Acha-se incapaz de realizar algum trabalho por ela mesma, se sente burra, com dificuldade de concentração, e que toma medicação para isto. Também se queixa que não consegue fazer planos. Relata dois episódios de depressão profunda tratados com medicação e psicanálise. Ao mesmo tempo fala de alguns sintomas físicos: faz RPG e acupuntura para a coluna cervical por causa de uma retificação da lordose, com episódios de muita dor utilizando-se de colar cervical e com orientação cirúrgica. Uma mulher limitada pela dor, sem capacidade de desejar e sem esperança.

Na leitura espontânea vejo um corpo de menina, parece muito mais jovem do que realmente é, ombros muito elevados e aduzidos, mãos pequenas e com pouco tônus, assim como os pés, coxas em rotação interna e adução, tórax em inspiração crônica, com um corte ao nível do diafragma, tem um desvio da bacia à E, e no plano sagital confirmo a retificação da cervical com aumento da lordose lombar e recurvatum dos joelhos.

De um modo geral tem um tônus muito elevado no tronco. A impressão era de uma pessoa que não pode se colocar em pé naturalmente e acaba por se colocar de uma forma particularmente angustiante, muito elevada na parte de cima, e aterrada na parte de baixo, sem comunicação entre as duas partes, impedindo que as forças que vêem de baixo sejam transmitidas para a coluna e que as forças que vêem de cima não sejam transmitidas para o chão através da bacia, pernas e pés, que estão muito rígidos.

A paciente fala que está tranquila, mas que tem dor no trapézio E, que por causa disto o ombro parece mais projetado para frente que o D. Ao toque percebe que não é. Neste momento podemos ver como já na leitura espontânea o toque pode ter uma função organizadora da imagem corporal. Tem dor em todo o trajeto da coluna. Quando coloco os pés paralelos para a 2ª leitura, aparece uma dor no pé E, e muita rotação na perna D, mas refere que na região superior do tronco as tensões diminuem. Quando toco pareço estar tocando em pernas de pau. Tem muito peso diz ela. Reflito no peso que carrega ao longo destes 18 anos.

Quando se deita vejo a lordose lombar muito acentuada que não cede, uma rigidez nas pernas que faz parecer estar empurrando contra o chão como que para se segurar, e a região cervical muito retificada, quase não respira. Ao ler esta descrição me ocorre que é uma variação de postura muito comum em uma menina de 7 anos. Quando sente minha mão no abdômen, sente-se acolhida, e consegue relaxar. Penso na relação transferencial, e que minha mão neste momento torna-se uma referencia de segurança que a permite relaxar um pouco e soltar a tensão das pernas e da barriga. Uma experiência de handling como diz Winnicott. Proponho o trabalho postural. Solicito sua consciência no local do toque das minhas mãos e no mesmo lugar aonde vai a consciência peço para trazer a respiração. Instala-se a onda respiratória. Alinho os braços descendo os ombros, ajudo com a onda respiratória, a descer as costelas altas muito elevadas e as baixas muito abertas, as costelas quase não se movem. Digo para perceber através do contato com minhas mãos os pequenos movimentos que começam a surgir. Sigo alinhando a bacia que está deslocada para a E, e a perna D muito aberta em relação a E, como se estivessem uma para cada direção. Dobro seus joelhos e instalo a pompagem lombar. Em seguida desço os ombros novamente e solicito presença nas mãos mantendo-as abertas para estirar a fáscia palmar e ajudar a relaxar na região dos ombros. Na cervical preciso ajudá-la a deixar de empurrar as vértebras cervicais para o chão, toco na vértebra fazendo uma leve pressão e solicito que não empurre contra minha mão. Ela entende meu pedido, não tinha consciência desta força. Ao soltar permite um pouco de estiramento na coluna cervical. Tem agora toda a cadeia posterior estirada o máximo possível, com a boca entreaberta, os suspiros saem um pouco contidos, mas é algum som, e penso na região da garganta e pescoço e o diafragma que estão começando a se soltar. Depois de alguns minutos começa a ter tremores nas pernas, fica com a respiração mais difícil, mais rápida e curta. Vejo que vai entrando num sofrimento, trabalho com ela solicitando que faça a onda mais lentamente, dando contenção e estimulando ao mesmo tempo a prosseguir. Para ela é muito difícil atender todos os meus pedidos, manter-se no eixo, os pés elevados, manter a distancia entre os joelhos, as mãos abertas, os ombros relaxados, não empurrar o pescoço contra o chão e respirar ao mesmo tempo. Para quem conhece o trabalho postural proposto na terapia Morfoanalítica, sabe que estou introduzindo poucos elementos de estiramentos, mas se ela puder relaxar a coluna estando no estiramento máximo permitido pelas suas retrações, estará ganhando muito. Não é um trabalho fácil, ela precisa acionar todos os sentidos e aceitar as reações que vêem do corpo para garantir todas as minhas solicitações e manter-se com um movimento respiratório livre o suficiente para não impedir o movimento diafragmático, pois sabemos que isto equivale a encurtar a cadeia posterior. É possível na medida em que me sente dando continência para o que vive neste momento, estando no limite das tensões. Em um determinado momento referiu dor na lateral das pernas, mas incentivei a continuar e ia dando-lhe pequenos apoios com minhas próprias pernas para descansar. Nem sempre utilizo estes apoios, mas com Carolina pensei que o apoio seria um importante elemento transferencial neste momento, sentir-se amparada na dificuldade. No final ela sente o corpo mais alongado, o pescoço mais relaxado, assim como as coxas, o peito e a bacia bem mais abertos, mais no chão e comenta:

P – Foi difícil, pois quando sinto dor parece que não vou agüentar.

Pelos seus relatos anteriores eu tinha um pensamento de que a mãe que ela introjetou era uma mãe que não suportava sofrimento. Neste momento da sessão, quando ela fala da dor pensei em duas opções: seguir a dor e seu significado, ou trabalhar com a fantasia que não poderia agüentar. Optei por perguntar:

T- De onde vem esta crença?

P- Da minha mãe, que sempre dizia que não iria suportar e eu também entrei na história.

É maravilhoso verificar a riqueza deste trabalho. Trabalhar com a postura biomecanicamente falando já é apaixonante, você pode cuidar de todos os aspectos que gritam por ajuda que vimos na leitura inicial. Equilibrar o tônus entre os planos, alinhar a bacia, soltar o diafragma e o tórax inflado, equilibrar as forças entre a parte de cima e a parte de baixo do corpo e com isto restabelecer as curvas da coluna. Mas ao mesmo tempo em que trabalhamos com o Corpo Real vamos também trabalhando o Sensorial, pois vou solicitando sua presença em cada local que toco com minhas mãos, o que permite que se aproprie deste corpo que ficou esquecido e perdido sem saber o que fazer com as partes dissociadas para poder juntar num todo coerente e sem tensão. Isto se torna possível pois está aberta a receber ajuda, não apresenta nesta sessão defesas que impedem o objetivo do trabalho, e segue meus comandos diligentemente. Enquanto vou trabalhando com ela sinto que vou reparando esta falha no seu desenvolvimento, vejo a pequena Carolina perdida, desamparada, sem rumo e sem contenção. Tenho muito prazer em trabalhar com ela. O trabalho postural é perfeito para ela neste momento. Além dos benefícios citados, permitiu a emergência da angustia que vivia pela falta de contenção da mãe. Esta angustia se manifesta concretamente no trabalho postural quando fala da dor, que diz que não vai aguentar. Mas quando pergunto de onde ela tirou esta idéia, ela fala da mãe que não agüenta. Incorporou uma mãe que não tem contenção da dor, mas no momento em que experimentou suportar a dor já está se distanciando disto. Graças a este trabalho postural que é ao mesmo tempo relacional, ela está introjetando uma imagem de mãe a partir da relação com a terapeuta que pode suportar a dor da filha, e desenvolve nela mesma esta capacidade.

Proponho a massagem sensitiva, que ela gosta muito. No final relata:

P- Senti algo estranho hoje. Foi uma lembrança que veio do seu toque na minha pele. Lembrei-me da minha mãe, que fazia massagem em mim quando era pequena, uns 2, 3 anos. Sabe, lembrei até da sensação na pele. Minha mãe dizia que eu dormia.

Interessante ver que a paciente associa a experiência da massagem com a lembrança da mãe. Eu fico agradavelmente surpresa, até então só falava de uma mãe em que ela própria cuidava. Lembrar-se da mãe cuidando dela revela para ela um momento da vida que estava oculto pela mágoa.

O processo de sentir, que leva ao reconhecimento e aceitação do passado, possui uma função reveladora … (Miller, Alice- Não Perceberás).

A massagem reativa a parte boa da mãe. A falta de contenção da mãe a partir do traumatismo do acidente encobriu as partes boas, como se tivesse perdido a mãe no mesmo acidente. Nesta sessão pôde se diferenciar da parte que sofre e resgatar as boas.

Porém percebo que a paciente fala desta lembrança com emoção, mas sem chorar. Vejo no seu corpo muita contenção, na barriga contraída, na garganta apertada, no rosto vermelho. Apesar de não expressar a emoção, percebo um processo acontecendo, o resgate da parte boa que está reativada dentro dela. É um momento crucial na compreensão de alguns sintomas físicos em associação com a emoção represada.

Pergunto:

T- Qual é o sentimento?

P- Uma angustia.

Penso que a angustia está presa no choro represado.

T- Desde quando você não chora?

Ela me diz que quando o pai morreu não podia chorar na frente da mãe, a mãe já chorava muito, então desde esta época quando entra em casa corta o choro. Interessante a palavra que ela usou, ela “corta” o choro. Esta palavra me permitiu a associação imediata com o corte no corpo real que eu já via na retificação, mas ela não percebia e não associava. Como diz Alice Miller, é preciso sentir no corpo para que se revele o conteúdo do corte.

T- Onde você faz o corte no seu corpo?

P- No pescoço. Ela me mostra com a mão. Eu só chorava escondido, no banheiro da escola.

T- Qual era o sentimento?

P- Era de saudade. Achava que estava sendo castigada por algo errado que fiz, e ficou um vazio, perdi a mãe também.

Eu digo com compreensão e muito carinho, ajudando a associar o corte da emoção (choro) com o conteúdo ( sentimento):

T- Então a angustia tem todos estes sentimentos: saudades, culpa , vazio…

Ela agora chora, diz que sim.

P- Não sabia que vivia tudo isto. Pareciam sutilezas que não causariam nada, mas veja só…

Cortar a tristeza e o choro, não poder contar com a mãe para dar contenção à sua própria dor, é o que ela pensa que eram sutilezas que não causariam nada, nenhuma conseqüência na sua vida e no seu corpo. Localizar no corpo o corte psíquico tem a importância de refazer a conexão entre o corpo real, o sensorial e o afetivo, uma possibilidade de sair da dissociação.

Estar ao lado do paciente em diferentes momentos do seu processo terapêutico dá ao paciente um ambiente de amparo e sustentação, o que Winnicott chama de holding. Nesta sessão podemos ver este ambiente durante o trabalho postural, na condução verbal e corporal dada à paciente, especialmente quando entra em sofrimento e pensa que não vai aguentar. A percepção de uma pessoa, a terapeuta, que pode suportar sua dor sem desmoronar permitiu que entrasse em contato com seu sofrimento e finalmente pudesse fazer o luto que estava calado na sua garganta com tanta força a ponto de levar a um quadro de retificação e dor cervical. Foi o trabalho postural suave, mas ao mesmo tempo firme até o limite das tensões que podia suportar que abriu o caminho para as lembranças desta época. O que ocorre neste momento importante do trabalho postural é uma desconstrução de um tônus alterado, de uma imagem corporal equivocada e da convicção que ela tem que não pode suportar nada.

A massagem sensitiva em seguida permitiu se conectar com a mãe boa, reencontrando este lugar de filha protegida e querida, que ela achava que tinha se perdido no acidente. A massagem sensitiva que banha a paciente de cuidados envolventes dá a ela a percepção dos seus limites e contornos, condição essencial para a criação de um lugar psíquico como diz Winicott. O fator traumático, e a condição da mãe que não permitiu viver o luto obrigando-a a calar qualquer dor, funcionariam assim como uma tela-cortina a qualquer lembrança anterior. A massagem desvela a lembrança da mãe boa, mas, além disto, também a culpa, que ela revela a partir do relato que fez do conteúdo do choro que escondia da mãe, e que tinha a convicção que estava sendo castigada. De qual culpa ela fala?

Não foi dela a culpa do acidente. Ela pensa que sim. A palavra castigada chama a atenção das fantasias. Até que ponto não teve um dia o desejo de que o pai morresse? E se isto ocorreu o que não é difícil imaginar que tenha acontecido, a realidade da morte chega confirmando a onipotência infantil, e neste caso sua culpa. Numa de suas últimas sessões que fez relatou que imaginava que se a mãe não parava de chorar era porque ela não era boa para deixar a mãe feliz e que a mãe também pensava que era ela quem deveria ter morrido. O choro constante da mãe confirmava para ela sua culpa e a fantasia que foi seu desejo que o matou. No momento que pôde expressar sua dor e fazer o luto, sabendo que sua terapeuta não iria desmoronar, abriu-se o caminho para as lembranças da época do acidente e para as anteriores, em direção há um tempo onde não se sentia ameaçada no seu lugar de filha. A compreensão da terapeuta, o quadro do trabalho postural, a massagem sensitiva e sem julgamento, permitiu a emergência da culpa e a possibilidade de livrar-se dela.

Em pé comenta que tem um alívio de uma tonelada. Penso na culpa, sabemos que a culpa tem um peso enorme. Com o alívio do peso pode colocar-se em pé com menos esforço, o que se manifesta quando relata sentir-se mais alongada, e mais para baixo os ombros. Vejo muito mais equilíbrio entre os volumes da parte superior e a parte inferior do corpo, as curvas da coluna estão suavizadas. Eu a ajudo a perceber estas mudanças conduzindo a consciência para estas regiões.

T- Em contato com seu corpo agora, qual é o sentimento que vem?

P- De que é possível o novo.

É possível o novo traz a esperança de volta. Ela entra em contato com a esperança a partir do vivenciado no corpo. Sinto no ar este sentimento fundamental. Podemos pensar que o holding permitiu a emergência da culpa onipotente, o que favorece sua liberação, mas também “garantiu uma reserva de onipotência necessária à vida e para que sentisse esperança no futuro”. (Cintra, Elisa M de Ulhôa. As Funções anti-traumáticas do objeto primário: holding, continência e rèverie).

Nas palavras de Serge Peyrot, há um movimento de Decomposição e Recomposição, que no caso apresentado aparece claramente nesta mesma sessão. Nos aspectos físicos em relação às forças mal utilizadas o trabalho corporal reorganizou a postura global e reativou a rede de conexões sensações-emoções responsáveis pelo equilíbrio postural, até que pôde reunir os componentes essenciais da situação traumática que não podia ser elaborada, e que estavam contidas nas tensões que foram liberadas pelos estiramentos globais. ( Serge Peyrot – Subjetivando o corpo e objetivando as emoções).

Lembro-me de uma sessão em que após o trabalho postural em que ela diz, em pé, no final: “Está desorganizado, mas mais organizado, é estranho, mas eu sinto porque é mais fácil ficar em pé”. Desorganização do conhecido para ela é igual a decomposição, mas trás o que ela chama de organizado, a recomposição, o novo.

O trabalho corporal analítico que permitiu viver concretamente no lugar do corpo o duplo movimento simultâneo equivale a desfazer as velhas estruturas do passado e construir uma postura psíquica e física nova e integrada. (Serge Peyrot).

Também podemos pensar nos aspectos psíquicos em relação aos sentimentos represados e mal interpretados, sem contenção e/ou interpretação. Separa-se da mãe que não tem esta contenção e recupera a mãe de antes do acidente, quando tem a lembrança de cuidado. Recupera a capacidade de pensar, visto que esta capacidade se desenvolve na inter-subjetividade da relação. Na relação com Carolina isto se manifesta na necessidade da paciente de uma pessoa adulta que pudesse pensar por ela a experiência traumática, sem se desmoronar, que se transforma então em material disponível para criar pensamentos ( Serge Peyrot). A terapeuta, com sua capacidade de contenção e empatia física e psíquica com a paciente a ajudou a interiorizar sua própria capacidade de contenção que a permitirá no futuro pensar e desenvolver o processo associativo.

Este processo terapêutico durou em torno de 10 meses. Carolina foi morar em Londres e aprender inglês. Sonho que parecia impossível pelas razões que colocou na entrevista, primeiro que sentia-se burra, incapaz de aprender, e em segundo porque para ela era impossível separar-se da sua mãe, não sabia qual das duas iria suportar a separação, intuía que era ela mesma. Estava naquele momento como uma menina de dois anos que não consegue se afastar da mãe e explorar o mundo porque não tem ainda a segurança afetiva da mãe interna boa e solícita. Como uma engrenagem que desemperrou ela recuperou esta segurança, que ficou obscurecida após o caos que se instalou após o acidente.

O trabalho postural oferecido nesta sessão , como já disse, ajudou a desconstruir as convicções e tônus alterados com as intempéries vividas sem continência, sem holding e sem rêverie. Segundo Elisa Ulhôa Cintra, dentro da perspectiva de Winnicott o holding refere-se mais a firmeza do contorno e a continência refere-se mais a capacidade da mãe de receber e acolher os aspectos excessivos e indigestos dos afetos. (A continência das identificações projetivas da criança, pela mãe, é uma das matrizes do universo simbólico, do pensamento abstrato, matemático, verbal e metafórico). Durante o trabalho postural Carolina sentiu a firmeza e segurança da terapeuta de que ela, Carolina, podia suportar a dor e se deixou guiar em absoluta confiança, apesar da dor, em direção a uma nova organização tônica e postural. A massagem no final permitiu viver mais o aspecto da continência, quando ela falou da angústia e sentiu-se acolhida por mim sem medo que eu desmoronasse. Há duas dimensões descritas por Cintra para “o conter”, primeiro a aceitação das emoções intensas provenientes do outro e a segunda é a rêverie, que exige o trabalho de processar, ou a elaboração psíquica. Segundo ela é o começo da estabilidade mental, que pode ser rompida por duas fontes: a mãe ser incapaz de suportar a ansiedade projetada pelo filho, e este, por sua vez acaba introjetando uma experiência de terror ainda maior do que a que havia projetado no início; e a estabilidade mental também pode ser rompida pela excessiva onipotência destrutiva da fantasia infantil. Podemos ver que Carolina viveu com o trauma as duas condições. Mas no setting terapêutico com a terapeuta encontrou holding, continência e por fim rêverie, quando começou a processar o conteúdo da angustia, a culpa, a saudade e o vazio. Além de ter seus terrores acolhidos pela terapeuta, ela introjetou também em certa dimensão a capacidade de rêverie materna, iniciando seu processo de elaboração, germe da futura independência. O principio do aparelho de pensar é esta rêverie materna introjetada. A complementaridade do processo de Desconstrução veio a partir deste processo elaborativo, que reafirma e ajuda a construir esta nova organização advinda do trabalho postural. Carolina desenha um novo contorno, recupera a confiança e a esperança para finalmente explorar o mundo e descobrir os desejos próprios.

É possível o novo é a tradução deste processo.

Bibliografia:

Comunicação pessoal em supervisão Clínica- Serge Peyrot- em outubro de 2011.

Peyrot, Serge- Subjetivando o Corpo e objetivando as emoções- Palestra realizada no Instituto Sedes em São Paulo em 28 de setembro de 2011.

Cintra, Elisa Maria de Uchoa. O Corpo, o Eu e o Outro em Psicanálise- Ciclo de palestras na Clinica Dimensão – capítulo: As funções anti-traumáticas do objeto primário: holding, continência e rêverie.. 2006. Dimensão editora.

Miller, Alice. Não Perceberás.

A AUTORA

Márcia Lavaqui

Fisioterapeuta formada pela UNESP – Presidente Prudente iniciou a carreira como docente de cinesiologia e supervisora de alunos na área de ortopedia. Terapeuta Morfoanalista formada pela turma de 1988, clinicando desde então e atuando também como Coordenadora da Formação em Terapia Morfoanalítica no Brasil. Membro fundador da Associação Brasileira de Terapeutas Morfoanalistas onde já foi presidente. Membro filiado do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo.